terça-feira, março 15, 2005

enlevo 2

É, sobretudo, o mar. Ou, talvez, a falésia.
O cão grande, pachorrento, pedindo companhia,
ávido do passeio pelas dunas. Os pequenos arbustos,
as ternas flores inesperadas, flores de espanto, as
pedras várias, sabedoras. Também o ribeiro, o cantar
das águas escondidas, misturado no gorjeio dos
pássaros que os pinheiros bravos envolvem
em mistério. Assim o planeta se desvenda. Assim
o corpo se dispersa, pura energia,
em lágrimas e riso.

mário contumélias

enlevo

enlevo triste este
em que medieval te sentas
e eu fico só a olhar-te.
à distância, as aves
são finitas, o mármore
ressoa. os sentidos
adormecem mansos. há
noites em que a memória
fita. há árvores,
dispersos céus. as vozes
na floresta enchem tudo
de um delírio verde.
em mim e em ti se perde
este luar de março...

mário contumélias

quarta-feira, março 09, 2005

carta

estás aí. desse lado da luz. encostada, enrolada no corpo. quis sempre descobrir-te. desvendar-te as posturas. adivinhar-te os pensamentos. beber-te as emoções. mesmo as mais secretas. sobretudo, as mais secretas. cada dia, um caminho. um vocábulo. uma palavra guardada. um tesouro para o depois: um dia, quando o frio ameace. ou quando o medo... talvez no triste entardecer das aves. talvez quando o mar não for mais um desafio. ou o campo recuse encher-se de papoilas...
suavemente, deslizas. a luz esmorece. por isso, escrevo sol, ainda uma vez. ou uma carta. as palavras que procuro na busca de dizer-te, pura música... nas minhas veias, só o teu sangue aquece.

mário contumélias

domingo, março 06, 2005

água

escuta é o som da água
branca, rumorosa, cavando o seu caminho na encosta
ouve: o ciclo está a chegar ao fim. algures a pedra ficará
mesmo depois dos depois. depois da chuva nas árvores
dos gestos ternos, suaves, das mais breves alegrias
(a pedra, a água, a pedra na água, a água na pedra)
escuta: ouve: vocábulos, silêncios
voos, peixes... (a música, a água, a música da água,
a água da música). corda, a corda, acorda é o
ciclo, não a lua, não o abraço, sim o abraço
cuidado. o sol tem mil bocas. ávidas. perversas.
sentes-lhe a fome? sentes? escuta: era
uma vez um menino, era uma vez um rapaz (faz faz...)
: era uma vez uma princesa no seu castelo encantado,
disfarçado numa rocha : era uma vez um guerreiro com
uma espada de medo para matar o dragão : era uma vez
uma fada que queria entrar na estória, ficar na fotografia,
no teu encanto feliz. escuta: é o som da água
(a pedra, a água, a pedra, a pedra na água,
a água na pedra) ouve...

mário contumélias

terça-feira, março 01, 2005

as mãos

súbito, o vazio. o segredo do corpo. o tempo inquieto.
lentas, as mãos percorrem-te. curiosas, primeiro.
sabedoras, depois. aprendem depressa, as mãos. viajam.
há pequenas curvas em que se demoram. descobrem coisas.
acendem desejos. riem, até. as mãos, senhoras do instante,
pura energia. poços de água e de luz. tão cheias de sol.

mário contumélias

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

terra de sonhos


no coração de orion escondem-se as novas. longe dos olhos. estrelas. bêbadas de azul. um céu dentro do céu. emoções. sentires. gestos dos deuses. ternos afagos.
terra de sonhos.

mário contumélias

domingo, fevereiro 13, 2005

emoções - primeira lição

1.
as emoções voam em ciclos
prendem-se aos retratos em silêncio
espreguiçam-se na memória quietas
escondem-se no segredo das lágrimas
sempre são alegria quando as vemos
tão distantes e serenas escorregam
nos anos já vividos demoram-se
esperam ser revisitadas... há quem
as guarde numa arca para quando os dias
forem longos há quem as gaste logo e
nada deixe para depois.


2.
ah! as emoções... fazem sempre chorar
sobretudo quando cheira a romãs e a noite
se fecha sobre o próprio ventre à espreita
do propício momento são flores numa velha
jarra mas não fenecem nunca recusam-se
a murchar antes ganham cor patine
[acho que é assim que se diz patine]
vestem-se de luz e sombra disfarçam-se
com a roupa de outros tempos lavam a cara
deitam fora as rugas avermelham os lábios
rescrevem na face o rubor antigo.


3.
sabem tudo da música conhecem o pudor
das palavras mais secretas dançam nuas
nos corredores quando os gatos adormecem
coleccionam silêncios gestos impensados
pequenos objectos imprestáveis papeis
amarelecidos e dobrados discretas
disfarçam-se nas datas mais difíceis às
vezes cheiram a mar outras à lânguida
terra que a chuva possuiu reconstroem-se
renovam-se são assim as emoções
quando a serenidade nos deixa olhá-las perto.


4.
outras vezes não outras vezes
tomam-nos de assalto há mesmo
quem soçobre feche os olhos
e parta para o longe é então
que elas se revelam na sua forma
de aves sibilinas rompem o espanto
rasgam as veias predizem o futuro
exalam odores que pensáramos perdidos
sussurram em desconhecidos idiomas
mas logo se aquietam é esse
o seu ofício a quietude.


5.
ah!, as emoções...

mário contumélias

as casas

as casas cheiram às mulheres
que nelas vivem é um cheiro
subtil e demorado, matriz de ternura
e de saberes, de nascimentos e de mortes
um cheiro que fica nas gavetas
e envolve quem as abre, que marca as paredes
pontuadas de retratos, de tiquetaques
de histórias de família ...
os homens passam pelas casas, viajantes
sem passado nem futuro, buscando o território
no corpo das mulheres, nos lábios e nos dedos
com que sábias elas os encantam e devoram.
eu nasci da árvore que era minha avó
e agora busco a tua sombra... procuro-a
na casa que tem o teu cheiro. és tu!

mário contumélias