sábado, junho 06, 2009

Evocação de Maio


1.
Primeiro foi o teu perfume.
O teu cheiro a laranjas e Maio,
o teu rosto molhado, a nitidez
do teu soriso, o coração inquieto
:sangue e fogo. Delírios misturados.
Uma alquimia estranha e proibida...

2.
Mais tarde os teus cabelos vieram
dar à pedra uma nova vibração. Eras tu.
Espaço lunar, tempo de estrelas
e águas deslumbrantes. Ouro
e seiva. Outono quase certo ou uma casa.
Eu mergulhava até ao coração…

3.
Os animais foi só mais tarde.
Os dois quietos no fascínio de ser
assim possível. Cúmplices,
quedávamo-nos serenos ante a maravilha...

4.
Ninguém sabe onde o vento
poisa as suas asas. Hoje bebemos
água fresca na fonte que há nos dedos.
A substância do teu cheiro em Maio
enche-me os bolsos de doçura.
Sei que os dias são longos,
que há abismos, que as noites
doem muitas vezes Mas
as palavras nascem como as rosas...

mário contumélias

sexta-feira, maio 29, 2009

Sempre Abril. Mesmo em Maio.



De madrugada, o telefone acorda-me, estridente. Do outro lado, o sub-chefe de Redacção de “O Século” diz-me: «é melhor vestires-te e vires já para o jornal; parece que há por aí umas movimentações militares»... Estremunhado, dispenso o duche, visto-me, e avanço. Já no jornal, mandam-me para a Praça do Comércio. Ainda não há povo, apenas militares. Um homem de “cara fechada”, firme nas ordens, está no comando; venho a saber, pouco depois, que é de Santarém, Salgueiro Maia de seu nome. Outros oficiais, suponho, vão chegando e empunhando a arma, mesmo à civil. O dia nasce, ainda não há povo, mas começam a aproximar-se os primeiros curiosos, que os “cacilheiros” depositam no Cais das Colunas; outros vêm do interior da cidade. Está tudo calmo. Por mim, não sei como conter a emoção; onde ir buscar forças com que garantir a objectividade jornalística que me pedem. Um pouco mais tarde, as coisas aquecem: há forças militares na Rua do Arsenal; são fiéis ao governo, segreda-se. Salgueiro Maia avança com os seus homens para o princípio da rua. Há, agora, frente a frente, militares feitos com o passado e um capitão “com saudades do futuro”. Como é que vai ser? Morre tudo aqui? No passeio do lado do Tejo, mais ou menos a meio da Rua das Naus, estou na via das balas mas nem dou por isso. Alguém me diz que é um brigadeiro “reaça”, que não desarma, que quer mesmo ir para a luta. Não tenho forma de confirmar, mas percebo que se parlamenta. Finalmente, ao fim de um tempo que me parece infindável, os homens do regime rendem-se ou desistem, não sei bem. Começa ali, o “25 de Abril” sem sangue. Respiro fundo e resolvo acompanhar os militares a caminho do Carmo, Rua da Conceição acima. Agora já há povo por todo o lado, gente que sorri, gente que ri, que aplaude. Quinta-feira de festa. Enterrado o medo, nascerão amanhã as primeiras flores nos canos da G3, arma que eu, “passado á peluda” um mês antes, tão pouco estimava. Os soldados sobem a rua, ainda com algum cuidado, cosidos ás paredes. Diz-se que a GNR não se rende e vai dar luta, mas as pessoas fazem fila dos dois lados da via, indiferentes ao perigo; a sede de liberdade abre as bocas, há tanto tempo cerradas. Toda a gente sobe ao Carmo. Passo por um GNR de mauser ao ombro, perdido no meio de tudo; passamos todos; o espanto na cara dele dava um “boneco”, onde é que para o Alfredo Cunha? Já o perdi, foi á procura do “25 de Abril” do seu incontornável talento; aquele é repórter até aos dentes, penso. No Largo do Carmo, há uma multidão que cresce e se junta. As ruínas, as árvores, o largo, a rua, está tudo pejado de gente. Ouve-se que Marcelo Caetano está lá dentro, com alguns ministros; que um dos altos dignatários chora de medo; mas ninguém se rende. Seja lá como for — mais tarde há-de chegar António de Spínola, para o cair formal do pano sob o regime que durante quarenta e oito anos fez perder Portugal e amordaçou os portugueses — é claro para todos que o amanhã começou. Um cidadão aproveita o impasse para ler o “Diário de Notícias”; manchete atrevida para a ordem vigente ontem, mas demasiado temerosa para o dia que vivemos: “Eclodiu um movimento militar”, titula o jornal. Podia titular: Re-Nasce Portugal. Naquele dia, quinta-feira, 25 de Abril de 1974, esta afirmação era uma verdade florida, aplaudida. Os homens destinados a fazer a guerra tinham, de madrugada, na aparente frieza dos tanques, no calor do gelado metal das espingardas, devolvido um país á História, e entregue ao povo o respeito por si, que lhe fora roubado. É por isso que este texto não tem rigor científico, sociológico, histórico, jornalístico. É, apenas e ainda, o texto de uma emoção que me ficou cá dentro e que constitui parte do mais valioso património da minha vida vivida; está-se nas tintas para a objectividade. Uns dias antes daquela manhã como nenhuma outra, o Zeca tinha-me dito no Coliseu: “Eh, Pá! Já nem os filhos da puta dos Pides salvam os gajos”. Tinha razão. Em 25 de Abril de 1974, como, dias depois, no primeiro 1 de Maio em Liberdade, Lisboa também soube ser Grandola. Que seja capaz de não perder, nunca, essa força. Que sejamos capazes.

mário contumélias
foto: alfredo cunha

domingo, maio 24, 2009

rosas 44

o genoma, já se sabe, não tem cor. e o amor?
o amor é cor-de-rosa por isso, às vezes, tem espinhos
coisas menos boas, misturadas com carinhos.

sábado, maio 23, 2009

planeta


as duas faces de marte são astros no céu
os teus olhos são o sistema solar... há coisas
assim claras na sua infinita complexidade.

moinho


o moinho faz de conta que conheceu Quixote
em dias turbulentos... agora, mais calmo
caiado de branco, tem boas velas
chama a atenção mas o moinho não
mói seja o que for quando o reconstruiram
partiram-lhe a mó é por isso que é
um moinho de enganos.

mário contumélias

escreve-me com as tuas mãos

morres onde? no frio da pedra? na indiferença do aço?
nas ruas do sangue? porque é nos metais que intensamente
vivemos. crucificados sim! não, não acredites nisto que te digo
o tempo corre sobre o meu corpo e deixa marcas, sulcos
rasto de dores tristes rios de prata noites de amor que não
aconteceram mãos acetinadas. às vezes uivo, como te contei
uma vez por outra, a lua chega e traz suspiros, ais, lágrimas
coisas que o pudor deve guardar. é então que sou um lobo
gosto de morder, de agarrar com os dentes, de ser por inteiro
possuído.porque morres? diz-me o que é isso de morrer? em
que praia distante? como se faz? como fazes? abres talvez as
pernas e deixas que impulsivo te penetre o mar.

mário contumélias

13-01-2007