sexta-feira, maio 29, 2009

Sempre Abril. Mesmo em Maio.



De madrugada, o telefone acorda-me, estridente. Do outro lado, o sub-chefe de Redacção de “O Século” diz-me: «é melhor vestires-te e vires já para o jornal; parece que há por aí umas movimentações militares»... Estremunhado, dispenso o duche, visto-me, e avanço. Já no jornal, mandam-me para a Praça do Comércio. Ainda não há povo, apenas militares. Um homem de “cara fechada”, firme nas ordens, está no comando; venho a saber, pouco depois, que é de Santarém, Salgueiro Maia de seu nome. Outros oficiais, suponho, vão chegando e empunhando a arma, mesmo à civil. O dia nasce, ainda não há povo, mas começam a aproximar-se os primeiros curiosos, que os “cacilheiros” depositam no Cais das Colunas; outros vêm do interior da cidade. Está tudo calmo. Por mim, não sei como conter a emoção; onde ir buscar forças com que garantir a objectividade jornalística que me pedem. Um pouco mais tarde, as coisas aquecem: há forças militares na Rua do Arsenal; são fiéis ao governo, segreda-se. Salgueiro Maia avança com os seus homens para o princípio da rua. Há, agora, frente a frente, militares feitos com o passado e um capitão “com saudades do futuro”. Como é que vai ser? Morre tudo aqui? No passeio do lado do Tejo, mais ou menos a meio da Rua das Naus, estou na via das balas mas nem dou por isso. Alguém me diz que é um brigadeiro “reaça”, que não desarma, que quer mesmo ir para a luta. Não tenho forma de confirmar, mas percebo que se parlamenta. Finalmente, ao fim de um tempo que me parece infindável, os homens do regime rendem-se ou desistem, não sei bem. Começa ali, o “25 de Abril” sem sangue. Respiro fundo e resolvo acompanhar os militares a caminho do Carmo, Rua da Conceição acima. Agora já há povo por todo o lado, gente que sorri, gente que ri, que aplaude. Quinta-feira de festa. Enterrado o medo, nascerão amanhã as primeiras flores nos canos da G3, arma que eu, “passado á peluda” um mês antes, tão pouco estimava. Os soldados sobem a rua, ainda com algum cuidado, cosidos ás paredes. Diz-se que a GNR não se rende e vai dar luta, mas as pessoas fazem fila dos dois lados da via, indiferentes ao perigo; a sede de liberdade abre as bocas, há tanto tempo cerradas. Toda a gente sobe ao Carmo. Passo por um GNR de mauser ao ombro, perdido no meio de tudo; passamos todos; o espanto na cara dele dava um “boneco”, onde é que para o Alfredo Cunha? Já o perdi, foi á procura do “25 de Abril” do seu incontornável talento; aquele é repórter até aos dentes, penso. No Largo do Carmo, há uma multidão que cresce e se junta. As ruínas, as árvores, o largo, a rua, está tudo pejado de gente. Ouve-se que Marcelo Caetano está lá dentro, com alguns ministros; que um dos altos dignatários chora de medo; mas ninguém se rende. Seja lá como for — mais tarde há-de chegar António de Spínola, para o cair formal do pano sob o regime que durante quarenta e oito anos fez perder Portugal e amordaçou os portugueses — é claro para todos que o amanhã começou. Um cidadão aproveita o impasse para ler o “Diário de Notícias”; manchete atrevida para a ordem vigente ontem, mas demasiado temerosa para o dia que vivemos: “Eclodiu um movimento militar”, titula o jornal. Podia titular: Re-Nasce Portugal. Naquele dia, quinta-feira, 25 de Abril de 1974, esta afirmação era uma verdade florida, aplaudida. Os homens destinados a fazer a guerra tinham, de madrugada, na aparente frieza dos tanques, no calor do gelado metal das espingardas, devolvido um país á História, e entregue ao povo o respeito por si, que lhe fora roubado. É por isso que este texto não tem rigor científico, sociológico, histórico, jornalístico. É, apenas e ainda, o texto de uma emoção que me ficou cá dentro e que constitui parte do mais valioso património da minha vida vivida; está-se nas tintas para a objectividade. Uns dias antes daquela manhã como nenhuma outra, o Zeca tinha-me dito no Coliseu: “Eh, Pá! Já nem os filhos da puta dos Pides salvam os gajos”. Tinha razão. Em 25 de Abril de 1974, como, dias depois, no primeiro 1 de Maio em Liberdade, Lisboa também soube ser Grandola. Que seja capaz de não perder, nunca, essa força. Que sejamos capazes.

mário contumélias
foto: alfredo cunha

1 comentário:

Leonoreta disse...

Não tenho idade para o saber mas hoje, 34 anos depois, eu pergunto: porque ria o povo?
• Pelo fim da guerra colonial e por uma descolonização que deixou quase todas as ex-colónias em guerra civil?
• Pelo fim da fome que grassava essencialmente na província e que hoje invade os grandes centros urbanos? – não sou socióloga nem me baseio em qualquer estudo que haja lido, apenas na minha percepção;
• Pelo fim da censura que hoje revive, encapotada?
• Pelo aumento do emprego que deixou de ser directo e nos é concedido pelas empresas de trabalho temporário (ETT) e o recurso aos falsos recibos verdes, sem direitos de qualquer espécie?
• Pela esperança numa sociedade mais justa, que passou a espezinhar todos os valores?
• Pelo fim da “família cunha” que hoje vive exacerbada e que quem a não tem ou recusa, de acordo com os seus princípios, passa por dificuldades, mesmo que empregado numa ETT, que lhe fica pelo menos com metade daquilo que a sua força de trabalho rende?
• Pelo início de uma era de direitos e liberdades defendidas que hoje não passam de miragens?
• Por uma política cultural em que hoje têm salas cheias os Tony’s Carreiras?

Até ver ainda tenho a liberdade de escrever isto, mas não passa de “até ver” e nem percepciono o até quando. Mais, acredito, Salgueiro Maia não saiu de Santarém para ajudar a construir a sociedade que fizemos e para a qual continuamos a involuir. Homens e mulheres que lutaram por um ideal toda uma vida deram-no-la para que nós passássemos 30 anos a deitar fora, a pouco e pouco, toda a sua dedicação, toda a sua luta.

De que ria o povo no dia 25 de Abril de 1974?
Em que pensa o povo, passados 34 anos?
“Foi bonita a festa, pá”, penso eu, parafraseando Buarque.